quinta-feira, 3 de abril de 2008

Os restos

Segundo conto que eu posto aqui, esse conto futurista fala sobre um relacionamento que era pretendido durar para sempre e uma idéia para torná-lo eterno. Há de ter mais paciência pra ler do que os outros versinhos curtos do site, mas acho que vale mais a pena também.


Os restos


"E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos"
Chico Buarque - Futuros Amantes




Resquícios que seriam os restos mortais de alguma alma eram manipulados naquela sala. A despeito dos nossos preceitos de que não deveríamos criar, recriar ou manipular a vida, talvez nem mesmo Deus, base desse argumento, questionaria a importância do que acontecia ali. Restos frágeis de uma existência complexa. Restos frágeis demais pra um réptil terrestre, complexos demais pro cientificismo da época dos que trabalham a dias naquela sala.

"Meu nome é Gabrielle e eu amo Jonas mais que tudo, e quero que seja pra sempre ..."

Talvez fossem como Deus, pelo rigor científico com que trabalhavam. Dispensam uma apresentação corpórea por não parecerem com nada que possamos facilmente reconhecer. Tinham a sala e uma aparelhagem, não parecia uma oficina nem uma sala de cirurgia. Encontram-se em um futuro incalculável ou talvez um futuro relativo, atemporal, tido aqui como futuro somente pelo fato da medíocre capacidade de seu narrador para descrever qual avançada era a civilização citada. Tal avanço só pode ser descrito por mim da seguinte forma: de tão avançada a civilização já se conhecia por inteiro. Não questionavam-se mais, havia respostas para tudo, bibliotecas variadas sobre todos assuntos, do ser ao não ser, o avanço dessa civilização os permitiu dedicarem-se a descoberta de outra civilizações, primitivas ou não. Códigos, códices, palavras: todas deveriam ser descobertas, desvendadas, expostas, discutidas e enfim arquivadas para posterior consulta.

O trabalho em o que seria uma tentativa primitiva de perpetuar uma informação continuava intenso. Calculando da forma que vemos o tempo, poderíamos dizer que séculos eram necessários para decifrar apenas uma letra.

"Meu nome é Jonas, amo Gabrielle e quero que seja pra sempre..."
Os restos naquela sala respondem como se seguissem um padrão.

Caráter comum no que conhecemos como matéria é o aspecto palpável. No objeto manipulado o que havia de paupável era pouco, o que tornaria imprescindível que fosse decifrado também os códices encontrados junto. A referida civilização considerava matéria também as partes inatingíveis pelos sentidos: apesar de não verem nenhum propósito nos sentimentos sabiam através de seus estudos a importância deles para muitas civilizações menos avançadas e sabiam que a recuperação e a reprodução fiel de qualquer forma de realidade das primitivas dependeria de um profundo estudo sobre eles. O padrão dos resquícios de vida revelaram-se mais tarde se organizarem em cadeias, representarem um sentido e tratarem-se de parte decifrável de um sistema de existência biológica, ou, sendo mais correto, de dois sistemas. Para nós eram apenas fios de cabelo de duas pessoas.

Em outro departamento de pesquisas os padrões da língua se organizavam. De forma complexíssima era revelada uma história simples, de palavras simples e simples razões que seria a chave para uma reconstituição.

"Meu nome é Gabrielle e eu amo o Jonas mais que tudo, e quero que seja para sempre. Meu nome é Jonas, também amo Gabrielle e quero que seja pra sempre. Estamos em 2008, passamos anos maravilhosos juntos, mas sentimos semanas atrás um abalo significativo no nosso relacionamento. Sentimos que por alguma besteira poderíamos nos separar e isso seria péssimo. Motivados por razões adversas discutimos, nos afastamos, nos magoamos e por fim nos separamos. Passamos então os dias procurando um motivo razoável para a separação, apesar de encontrarmos atráves do ciúme e das mágoas diversos motivos para não voltarmos, continuamos sendo um do outro, mesmo afastados. Três dias atrás, como sem querer, a encontrei na rua, sem exitar falei tudo que sentia por ela, tudo junto, sem intervalos. Passamos os outros dois dias no paraíso, e no terceiro dia veio o medo de perdê-la outra vez: nela e em mim. Gabrielle então teve uma idéia, faríamos uma capsula do tempo, contaríamos a nossa história e guardaríamos alguns fios de cabelo para uma eventual reconstituição do nosso DNA. Talvez um câncer, uma mágoa mal curada, uma fatalidade ou uma crise de ciúme possa dar um fim definitivo a nós, mas temos certeza que nos últimos dois dias vivemos o paraíso, e é aqui que queremos ficar para sempre. Escrevemos e cavaremos bem fundo para que em qualquer época nosso amor possa durar para sempre, para que uma civilização avançada possa nos aproximar novamente, ou que para pelo menos tenhamos a esperança que isso aconteça.

Elle&Jonny"